O VALE DA MARY ARANTES #COLLAB

Nossa colaboradora (e mãe) compartilha pérolas da arte popular, direto do Jequitinhonha

Por MARY ARANTES*

Meu nome é Mary Arantes, mais conhecida como meiridisain…

O nome de batismo deste espaço em que aqui escrevo, foi dado por mim, o que me faz sentir cofundadora. À convite da Natália, a quem amorosamente chamo de Ursinha, estarei sempre por aqui, escrevendo sobre o mundo das artes, artesanato e design, bandeira que carrego há anos e que culminou no trabalho de curadoria que faço hoje para o evento Quermesse da Mary.

E hoje tem spoiler: a próxima acontece nos dias 14, 15 e 16 de abril. Este evento tem como intenção a valorização do pequeno artesão, da arte popular brasileira. A ideia é fazer um resgate das técnicas artesanais, valorizar o feito à mão e tirar estes artesãos da invisibilidade.  Muitos de vocês conhecem várias obras de artistas populares, mas não sabem nomeá-los. Nomeá-los, faz com que os tornemos reconhecidos.

Trabalhei como curadora do Sebrae em comunidades carentes desse país gigantesco. Foram estas comunidades, tão distantes da civilização, que me fizeram ficar apaixonada e querer lutar pelo reconhecimento do que fazem e como fazem.  

 A arte popular nunca esteve tão em alta no mundo. Anos atrás eu já tinha certeza de que ela seria a grande diferença, num mundo tão igual das caixas brancas. A arte manual é exclusiva, por mais que seja repetida. Tem uma frase que diz que “a beleza do artesanato é a imperfeição”. Conceição dos Bugres, renomada escultora em madeira dos famosos Bugres, também dizia: “Parece que são iguais, mas são diferentes”. Na verdade, cada objeto carrega o suor da mão de quem os fez, carrega dor, silêncio, alegrias, falta de chuva e muitas vezes carrega a fome batendo na “boca do estômago”.

Retirá-los da “lonjura”, como diria Manuel de Barros, trazê-los pra perto, é reconhecê-los, presenciar o quanto o analfabetismo colabora com a insegurança de lidar com o público. Muitos são de pouca fala, envergonhados do não saber. Mal sabem o quanto nos ensinam, no silêncio carregado de resiliência, simplicidade e pureza.

Nos últimos anos resolvi dividir com outras pessoas o meu Vale do Jequitinhonha, democratizar o que conheço, levar pessoas nas casas dos artesãos, das benzedeiras, conhecer mestres tamborzeiros, escutar batuques, atravessar rios, passar por estradinhas que eles sabem de cor e nós não, falar das características da cerâmica de cada região. Assentar na mesa da casa de um artesão, comungar a mesa com um deles e saborear comida caseira, feita com ingredientes locais, é um dos encantos deste território imantado. Ao fim do dia, assistir ao pôr de sol de uma das ilhas do rio é ter a certeza de que estar ali, naquele momento, é presente divino.

A segunda expedição ao Vale acontece entre os dias 18 e 25 de junho. Para saber mais, ligue pra Vilma, da Ziderich Turismo, e faça sua reserva (31-3261-7762). Junto comigo estão a Cássia Duarte, idealizadora do projeto, e Jotaerre Silva, nosso adorável guia e fiel escudeiro, também do Vale.

Começo hoje falando de 5 artesãos que você não pode deixar de conhecer.

🖤Zezinha – É bonequeira maiúscula, suas bonecas são autorretrato, nelas ilustra, com penas de rabo de passarinho, a delicadeza de roupas rendadas e outras floridas, como as usadas pelas mulheres no Vale. Os acessórios, como no trabalho da Dona Isabel Mendes, são adicionados depois e estão sempre em balanço.

Foto: Ulisses

Como quase todos os artesãos do Vale, ela aprendeu com a mãe este ofício. Esse traço da transmissão geracional, é muito comum no Vale.

Os objetos de trabalho são inimagináveis: escovas de dente velhas, sabugo de milho, casca de coco, espinha de peixe, retalhos de tecidos enlameados, fazem parte dos instrumentos escultóricos.

Desde a primeira vez que a visitei, o que me impressionou foi a feitura da decoração do seu quintal. Pés de mamão e estacas de cerca, ramas de chuchu sobre tela, viraram objetos de suporte das obras que quebravam, trincavam ou que deram errado, ali dependuradas.

Hoje, anos depois, este quintal ganhou ares de museu a céu aberto, repleto de animais feitos de barro, que ela faz só pra enfeite, entre uma encomenda e outra. Sempre digo que a casa da Zezinha é o Inhotim do Vale. Nos paredões de terra ao redor da casa, brotam as flores de barro, tão reconhecidas como sendo dali.

A casa ateliê da Zezinha fica em Campo Buriti, distrito de Turmalina.


🖤 Rita Gomes Lopes – Esse é o nome de batismo de uma das poteiras mais famosas do Brasil, mais conhecida como Dona Rita, que também aprendeu cerâmica com a mãe. Ela vive em Campo Alegre, distrito de Turmalina, teve 8 filhos, dos quais 4 também trabalham com o barro, além das netas e uma bisneta que já ensaia novas formas.

Foto: Arquivo Público Mineiro (colorizada)

A grande virada em seu trabalho foi quando reinventou o pote, estimulada pela CODEVALE, nos anos 1970, a mudar as características deles, já que todas faziam igual. Teve a ideia de neles imprimir formas humanas, que no início ela mesma estranhou, mas que foram muito bem aceitas pelos clientes. O pote com rosto hoje é sua marca registrada e seu ganha pão. Pote com boca e nariz.

 Além dos potes em tamanhos generosos, ela também faz botijas e cachepots, que na região são conhecidos como caqueiros.

SERVIÇO: você encontra o trabalho da Dona Rita na @alacacampoalegre (Associação dos Lavradores e Artesãos de Campo Alegre).

🖤André Cândido Teixeira – Mais conhecido como Andrezim ou Homem Pássaro, André nasceu e vive em Vai Lavando, comunidade quilombola perto de Berilo. O nome do quilombo vem da bateia que ia lavando, até que o ouro aparecesse.

André me disse que desde criança observava o aprisionamento dos pássaros em gaiolas, arapucas, estilingues, a caça predatória aos pássaros. A escultura que ele faz é uma alerta à vida desses seres que circundam seu ateliê, dentro da mata. A madeira que usa é sempre a seca, caída na mata, jamais cortada.

O resultado do trabalho é de extrema economia de formas que faz com que os pássaros, tão seus, desprovido de asas e ao mesmo tempo com o corpo arremessado ao quase voo, sejam, como na obra de Conceição dos Bugres, parecidos, nunca iguais.

André é o que faz. Os pássaros que faz, são como o André, simples, puros, leves como convém às aves. Parece não lhes faltar nada, apenas que alguém os leve para outros ninhos. Sugiro comprar no mínimo de 3 a 5, melhor vê-los em bando, ensaiando novos horizontes.

SERVIÇO: @andrevlteixeira

🖤 José Maria Alves da Silva e Margarida Pereira – Eles são filhos de Ulisses Pereira, falecido mestre dos mestres da cerâmica antropomórfica e zoomórfica do Vale. Ulisses tinha visões e esculpia seus seres imaginários na argila. Dizem que sempre enterrava a primeira peça que fazia, devolvendo à terra o que ela o havia dado. Sua obra hoje é das mais valiosas no mercado de arte popular.

FOTO: Lembranças do Brasil – As Capitais Brasileiras nos Cartões-Postais. Editora Solaris. 2005.

José Maria, assim como o pai, herdou e aprendeu o dom de esculpir estes seres. O trabalho dele, como o do pai, tem figuras mais verticalizadas, umas sobre as outras, enquanto as da Margarida têm traços morfológicos diferente dos dois e são mais horizontalizadas.

Rosana Pereira, filha de Margarida é artesã conceituada, com um trabalho autoral único. O  filho do José, Juninho,  também já faz peças em cerâmica. Os dois e a pequena filha de Rosana nos dão a certeza dessa continuidade e do traço geracional da cerâmica no Vale. Vivem na casa onde nasceram, na comunidade de Santo Antônio, perto da cidade de Caraí.

SERVIÇO: facebook/ José Maria Alves da Silva

🖤 Noemisa Batista dos SantosNoemisa aprendeu muito jovem a modelar o barro com a mãe Joana, paneleira que introduziu no córrego Santo Antônio a “moringa mulher de três bolas”, que já existia na região há mais de 200 anos, porém sem atributos humanos.

Diferentemente de sua avó e de sua mãe, ela se iniciou na arte do barro, esculpindo figuras. Cria estilo e temática próprios, reproduzindo cenas do cotidiano, casamentos, batizados. Como disse Lélia Coelho, o trabalho de Normisa é uma verdadeira crônica do cotidiano, da vida rural em que habita.

Apesar de ser uma das artistas mais originais da arte da cerâmica brasileira, vive isolada em condições econômicas difíceis. A distância, o alcoolismo e o tremor que ele provoca, acredito serem alguns dos fatores da dificuldade atual de sua produção.

Frágil como um pássaro, esta artista ainda hoje é o retrato da penúria em que alguns ainda vivem, apesar da arte extremamente reconhecida.Seu trabalho hoje é encontrado em coleções particulares, de museus.

Indo a Caraí, se o rio não estiver cheio, vá visitá-la no Ribeirão da Capivara, conhecer de perto quem escreve esta história com barro, tinta e, infelizmente, penúria. Não se esqueça de levar agrados, um sortimento de frutas, bala doce, bombons e biscoitos.

SERVIÇO: Secretaria da Cultura da cidade de Caraí, ou com Elza Alves na Associação dos Artesãos de Santo Antônio de Caraí 33-98893-3089.

* Mary é curadora e pesquisadora de arte popular e tem muita intimidade com as palavras; foi ela quem deu nome a essa Newsletter. Ah, ela nasceu em Rio do Prado, no Jequitinhonha, e é casada com o Moreco.
  1. Precisamos desesperadamente mais beleza neste mundo, Viva la vida! Acredito que com amor, sabedoria e leveza tudo que é bom chega .
    Muito Obrigada pelo olhar da Natália e da Mary nestas linhas , por trazer com tanto carinho este conhecimento. Beijão.

  2. Lindo trabalho, o artesanal é maravilhoso, todo o processo do início ao fim é incrível. Cada obra com a sua história, o artesão tem que ser mais aclamado, visto, e valorizado! Muito lindo, como foi relatado todas as histórias, a delicadeza das palavras escritas. Meus Parabéns!!!

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